Queda de Foguete Chinês mostra que a Guerra Fria 2.0 também ocorrerá no espaço



por Rodrigo S. F. Gomes*


A reentrada, na atmosfera, do foguete chinês Longa Marcha 5B, no início de Maio de 2021, teve uma repercussão extraordinária na mídia e na política internacional. Foguetes, satélites inoperantes, ou mesmo partes desses objetos estão constantemente reentrando na atmosfera terrestre (aliás, essa reentrada é um dos fins possíveis a ser dado ao lixo espacial), mas a atenção e o alarme em torno do Foguete Chinês em análise excederam a normalidade, o que não se deu por acaso.

Na verdade, este é o prelúdio de um novo momento na política internacional e na Era Espacial, que pode ser chamado de Guerra Fria 2.0 ou Nova Guerra Fria.

 

Contexto Geral

As relações internacionais entre o Ocidente (aqui entendido como os EUA e a Europa Ocidental) de um lado, e Rússia e China, de outro, vêm se deteriorando cada vez mais nos últimos anos. Se é possível afirmar que logo após o colapso da União Soviética houve um esforço para aproximar Moscou à Europa Ocidental, o cenário agora é o inverso, e a tentativa de isolar a Rússia fortalece os vínculos desta com a China.

Com efeito, as divergências que ampliaram a distância entre Moscou e o Ocidente não se limitam à anexação da Crimeia – as motivações também incluem a Guerra na Síria; a expansão do potencial energético russo com seus gasodutos; a crescente influência estadunidense na Ucrânia; e, mais recentemente, a diplomacia da vacina e a declaração nada cortês do presidente estadunidense Joe Biden em direção a seu homólogo russo, Vladimir Putin, acusando-o de ser um “assassino”[1].

Em relação à China, pode-se afirmar que sua ascensão como potência econômica ocorre num contexto atribulado – como seria de se esperar, uma vez que processos de substituição de hegemonias dificilmente ocorrem pacífica e tranquilamente[2]. Ademais, é notório que a pandemia da Covid-19 fortaleceu a xenofobia e a retórica anti-China, propagadas não só por integrantes da sociedade civil, mas até mesmo pelo então presidente Donald Trump, que muitas vezes se referiu ao Coronavírus como “vírus chinês”[3]. Outro exemplo evidente dessa retórica é o banimento e/ou críticas acentuadas a produtos chineses, desde uma conhecida rede social[4] até redes móveis 5G desenvolvidas por empresas chinesas.

A expansão da presença e da influência chinesas no mundo inteiro e seu projeto da Nova Rota da Seda desafia os interesses de Washington e de outras potências ocidentais em regiões da África, Ásia, e até na Europa[5].

Além disso, a temática dos direitos humanos também tem sido utilizada há alguns anos para questionar a ascensão chinesa, principalmente no que se refere à situação em Hong Kong[6]. Destaca-se, também, que a alegação de violações de direitos humanos na província de Xinjiang tem sido explorada pelo Ocidente para deslegitimar e criticar a China, o que tem azedado ainda mais a relação entre Pequim e Washington[7].

Em via adversa, as relações entre Moscou e Pequim, personificadas em Vladimir Putin e Xi Jinping, respectivamente, “nunca estiveram tão boas”[8] – a cooperação entre as duas nações encontra-se em níveis elevados em áreas diversas.

A tentativa de isolar a Rússia e os esforços para criar um alarmismo (de que o “mundo seria um lugar pior” sob a hegemonia global chinesa) em torno da ascensão da China têm aproximado e consolidado a confiança entre os dois países, que se reflete não apenas em foros como o BRICS e a Organização para Cooperação de Xangai, mas também é vislumbrada na cooperação bilateral, a exemplo da cooperação sino-russa no Ártico.

Já no Espaço…

A Estação Espacial Internacional (EEI) representou e ainda representa uma das maiores conquistas da cooperação internacional espacial, sobretudo por integrar Rússia e Estados Unidos numa mesma plataforma colaborativa, após décadas de competição no palco da Guerra Fria. Os mais de vinte anos de funcionamento da EEI mostram os benefícios advindos da colaboração internacional não só para as partes diretamente envolvidas no processo, mas para a humanidade como um todo.

Nada obstante, assim como no plano político geral, a relação entre os Estados Unidos e a Rússia também tem esfriado no espaço exterior – exemplo disso foi o litígio a respeito de um buraco aberto na Estação que provocou o vazamento de ar e alguns problemas técnicos à espaçonave[9].

A escolha pela adoção da empresa estadunidense Space X, depois de vários anos de dependência dos serviços de transporte de cargas e astronautas por meio dos foguetes Soyuz, da Rússia, também parece ter alguma influência negativa na cooperação entre os dois Estados[10].

Quanto à China, ela pode ser considerada uma potência emergente na exploração cósmica e tem somado êxitos no desenvolvimento de seu programa espacial, o que inclui o lançamento de duas estações espaciais nacionais (Tiangong-1 e 2), o lançamento de um rover (Chang’e 4)[11] no lado sombrio da Lua, além de outros feitos.

Conforme afirmado anteriormente, a reentrada de espaçonaves/foguetes/satélites na atmosfera não é uma novidade, tampouco uma excepcionalidade – a exemplo do caso da estação espacial estadunidense Skylab[12], que caiu no Oceano Índico, ou, ainda, da própria estação chinesa, Tiangong-1[13], que, mesmo fora de controle, caiu no Oceano Pacífico Sul.

Curiosamente, a queda do satélite soviético Cosmos-954, no ano de 1978, sobre uma área inabitada no Canadá é um dos poucos incidentes registrados em que um objeto espacial (e não apenas suas partes desintegradas) caiu sobre o território de um Estado, e, mesmo nesse caso, não houveram danos significativos e qualquer fatalidade.

Então, por que tamanha repercussão com o Foguete Chinês?

A ascensão da China está sendo resistida em uma pluralidade de aspectos, o que ocasiona o questionamento da sua legitimidade no campo político, sanitário-pandêmico, econômico, humanitário e até mesmo técnico-científico/espacial. Trata-se, ainda, de uma luta por influência em regiões cada vez mais alinhadas à China – que é a maior parceira comercial de vários países latino-americanos, africanos e asiáticos.

Assim, a relutância e o criticismo ocidentais à exploração espacial chinesa estão inseridos na lógica de competir e deslegitimar o potencial e a tecnologia chinesas, e a repercussão da reentrada do foguete Longa Marcha 5B exemplifica isso. Não se trata propriamente de uma preocupação com segurança (de satélites operacionais ou de pessoas em solo), mas de competição. E, não por acaso, ao ser instada por dirigentes da NASA para “agir com responsabilidade”[14], a China criticou a política de um peso, duas medidas e relembrou do episódio em que parte do foguete da Space X caiu sobre uma fazenda em Washington, em Março de 2021, mas que a mídia “romantizou” o incidente[15].

Pequim e Moscou na Nova Guerra Fria

Por outro lado, a Rússia, que historicamente representa uma ameaça aos interesses de Washington, se apresenta não como o protagonista dessa nova contenda, como a União Soviética foi outrora, mas como uma figura coadjuvante de extrema relevância.

No espaço, a Guerra Fria 2.0 pode servir como incentivo ao desenvolvimento de projetos conjuntos sino-russos, a exemplo da Estação Espacial Lunar[16]. Esse momento também vai importar, para Rússia e China, uma competição com Washington, seus parceiros na Europa e seu setor privado – no qual se destacam as empresas Space X e Blue Origin.

Agora, não é mais sobre quem será o primeiro na corrida espacial, mas trata-se de assegurar o prestígio e a influência de seu regime através da exploração espacial.

Finalmente, é necessário pontuar que a cooperação técnica-científica (e, por conseguinte, a cooperação espacial) não está alheia ou independente da política internacional. A política exerce influência sobre a cooperação e, a depender da condução daquela, esta pode ser expandida ou restringida[17]. Em síntese, a aproximação sino-russa deve favorecer a cooperação bilateral e ensejar projetos conjuntos também na área da exploração espacial, ao passo que o distanciamento entre Ocidente-Oriente pode significar a diminuição nos graus de colaboração principalmente com a Rússia, frustrando projetos para uma sucessora da Estação Espacial Internacional que inclua a pioneira na exploração espacial.


* Advogado, especialista em Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional, e pesquisador em Direito Espacial e Internacional.

[1] CNN WORLD. Russia reacts angrily after Biden calls Putin a 'killer'. Disponível em: "https://edition.cnn.com/2021/03/18/europe/biden-putin-killer-comment-russia-reaction-intl/index.html.... Acesso em: 13 mai. 2021.

[2] STUENKEL, Oliver. BRICS: e o Futuro da Ordem Global.1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017, pp. 231-233.

[3] CNN BRASIL. Trump gera mal-estar ao usar termo 'vírus chinês' para se referir ao coronavírus. Disponível em: "www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/03/17/trump-gera-mal-estar-ao-usar-termo-virus-chines-para-s.... Acesso em: 13 mai. 2021.

[4] THE NEW YORK TIMES. Trump Administration to Ban TikTok and WeChat From U.S. App Stores. Disponível em: "https://www.nytimes.com/2020/09/18/business/trump-tik-tok-wechat-ban.html". Acesso em: 13 mai. 2021.

[5] BBC NEWS. How the world is grappling with China's rising power. Disponível em: "www.bbc.com/news/business-45948692". Acesso em 13. mai. 2021.

[6] AL JAZEERA. China is committing human rights abuses in Hong Kong. Disponível em: "aljazeera.com/opinions/2020/4/18/china-is-committing-human-rights-abuses-in-hong-kong". Acesso em: 13 mai. 2021.

[7] REUTERS. China urges U.N. states not to attend Xinjiang event next week. Disponível em: "www.reuters.com/world/china/exclusive-china-urges-un-states-not-attend-xinjiang-event-next-week-2021.... Acesso em: 13 mai. 2021.

[8] REUTERS. Putin says Sino-Russian relations better than ever. Disponível em: "www.reuters.com/article/us-russia-china-putin-idUSKCN1T61FL". Acesso em: 13 mai. 2021.

[9] SPACE.COM. Russia Says It Will Keep Source of Hole (and Air Leak) on Soyuz Secret— But NASA Wants to Know: Report. Disponível em: "www.space.com/russian-soyuz-hole-air-leak-source-secret-nasa-chief.html". Acesso em: 13 mai. 2021.

[10] DW. O fim do monopólio russo no espaço. Disponível em: "www.dw.com/pt-br/o-fim-do-monopólio-russo-no-espaço/a-53640017". Acesso em: 13 mai. 2021.

[11] G1. Sonda chinesa Chang'E 4 encontra minerais que podem confirmar teoria sobre origem da Lua. Disponível em: "https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/05/16/sonda-chinesa-change-4-encontra-minerais-que.... Acesso em: 13 mai. 2021.

[12] DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Queda do 'Skylab' há 30 anos foi caso mediático. Disponível em: "www.dn.pt/ciencia/queda-do-skylab-ha-30-anos-foi-caso-mediatico-1305247.html". Acesso em: 13 mai. 2021.

[13] JUSBRASIL. Estação Espacial Chinesa Cairá na Terra nos Próximos Dias: Mas não há motivos para pânico!. Disponível em: "driigomes.jusbrasil.com.br/noticias/543606568/estacao-espacial-chinesa-caira-na-terra-nos-proximos-dias". Acesso em: 13 mai. 2021.

[14] THE GUARDIAN. ‘Irresponsible’: Nasa chides China as rocket debris lands in Indian Ocean, Disponível em: "www.theguardian.com/science/2021/may/09/chinese-rocket-debris-earth-indian-ocean". Acesso em: 13 mai. 2021.

[15] RT. China slams Western double standards over rocket debris and NASA criticism, with reminder about SpaceX rocket that fell on farm. Disponível: "www.rt.com/news/523373-beijing-china-space-rocket-nasa/". Acesso em: 13 mai. 2021.

[16] BBC NEWS. China and Russia to build lunar space station. Disponível em: "www.bbc.com/news/world-asia-china-56342311". Acesso em: 13 mai. 2021.

[17] Leia mais sobre a influência da política internacional na cooperação no artigo que escrevi sobre o assunto: “Cooperação internacional espacial entre EUA e URRS na Guerra Fria”: https://periodicos.ufpb.br/index.php/ricri/article/view/50984/31613.

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